A escalada do desmatamento da Amazônia registrada nos últimos anos pode exacerbar efeitos de mudanças climáticas em locais distantes. Esse tipo de efeito tem sido estudado e motivado vários alertas por especialistas, segundo reportagem da National Geographic de agosto de 2019.
Pelas estimativas do próprio governo brasileiro, 17% do sistema florestal amazônico já foi perdido. Isso sem incluir as partes que são consideradas apenas como degradadas.
Alguns cientistas sugerem que a Amazônia já pode estar se aproximando de um ponto crítico. A região está tão degradada que um pequeno aumento no desmatamento poderia enviar a floresta em direção a uma transição para algo semelhante a uma savana florestal, de acordo com uma análise feita em 2018.
Além de destruir para sempre grandes áreas da maior floresta tropical do mundo, essa mudança liberaria enormes quantidades de gases de efeito estufa que aquecem o planeta. Isso traria impactos em outras regiões.
A umidade da floresta alimenta, por exemplo, as chuvas de inverno que abastecem o Uruguai, o norte da Argentina e o Paraguai. A recente seca que levou à escassez de água em São Paulo, a maior cidade do Brasil, foi provavelmente exacerbada por mudanças na floresta tropical.
O clima fora da América do Sul também pode ser afetado negativamente. Como o vapor d’água aquece o ar ao se condensar no céu para formar gotas de chuva, uma redução significativa das precipitações causada pelo desmatamento na verdade esfriaria a atmosfera acima da região.
Essa perturbação de resfriamento criaria no hemisfério sul ondas atmosféricas, gerando efeitos incalculáveis ao redor do planeta.
Biodiversidade em risco
Há ainda que se considerar os impactos na biodiversidade da região. De sapos venenosos e tamanduás-bandeira a micos-leões-dourados e formigas paraponera, a floresta amazônica é o bioma mais rico em espécies do planeta. Lá, há mais diversidade de vida vegetal em um único acre do que pode ser encontrada em muitos estados norte-americanos. É o lar de 10% das espécies mundiais, incluindo 2,5 milhões de espécies de insetos.
A floresta também influencia o ciclo da água em escala regional e talvez até global. Quando a umidade sai do Oceano Atlântico, ela cai na floresta como chuva. Essa água é sugada por raízes profundas e, em seguida, passa pelas plantas e pela superfície das folhas antes de retornar à atmosfera.
E os ventos que sopram sobre o dossel irregular da floresta criam turbulência, o que permite que a atmosfera absorva mais umidade.
Toda essa água então se move como um rio gigante fluindo no céu, caindo como chuva e evaporando repetidamente até chegar aos Andes. No final das contas, a floresta produz pelo menos metade de sua própria chuva.
“Uma molécula de vapor d’água pode ser reciclada de cinco a sete vezes antes de sair do sistema, seja pela atmosfera ou pelo rio Amazonas”, diz Carlos Nobre, cientista do clima do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
Espécies em mutação
Mas os especialistas temem cada vez mais que essa delicada troca possa entrar em colapso. A perda de apenas uma fração a mais dessa floresta geradora de umidade poderia fazer com que muito mais dela secasse, o que reduziria ainda mais as chuvas, em uma espiral de autorreforço.
A mudança climática, décadas de exploração madeireira e desmatamento por incêndios florestais intencionalmente desencadeados já geraram secas recordes em 2005, 2010, 2015 e 2016.
“Já estamos em uma situação muito crítica em termos de mudança climática”, diz Adriane Esquivel-Muelbert, brasileira que estuda florestas tropicais na Universidade de Leeds, no Reino Unido.
Ela é a autora principal de um estudo publicado em 2018 mostrando que a mistura de espécies de árvores na floresta já está mudando em resposta ao aumento das temperaturas. “Se bagunçarmos com a Amazônia, as emissões de dióxido de carbono aumentarão tanto que todos sofrerão”, acrescenta.
Nesse estudo, publicado na revista Global Change Biology com mais de uma centena de outros cientistas como coautores, Esquivel-Muelbert descobriu que durante os últimos 30 anos, mais espécies de plantas tolerantes à seca apareceram na Amazônia, enquanto as espécies que surgem predominantemente em áreas úmidas estão diminuindo.
Árvores de crescimento rápido e árvores mais altas que têm melhor acesso ao sol estão competindo com as espécies mais baixas e amantes da umidade. “As espécies estão começando a mudar e isso pode mudar o comportamento da floresta”, diz a pesquisadora brasileira.
Limite próximo
Thomas Lovejoy, professor da George Mason University, e Carlos Nobre, da USP, recentemente tentaram estimar o quão perto do limite a Amazônia realmente está.
A projeção deles, publicada como editorial na Science Advances, sugere que nas partes mais suscetíveis da floresta tropical a perda de apenas 20% a 25% da área florestal original pode levar o sistema a uma transição imparável. Essa transição seria para um ecossistema mais seco, semelhante ao da savana.
Qual é a probabilidade desse cenário? “Não é algo que conhecemos com confiança, mas é uma possibilidade – e não apenas uma possibilidade maluca e estúpida. É muito real”, diz Abigail LS Swann, eco-climatologista da Universidade de Washington. Ela está contribuindo para um capítulo sobre mudanças abruptas de paisagem para a próxima avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.
Embora ninguém saiba exatamente onde pode estar o ponto de inflexão da Amazônia, “não faz sentido descobrir o ponto de inflexão realmente virando sobre ele”, diz Lovejoy.
É fato que a Amazônia já está mudando. A estação seca está se prolongando e as chuvas diminuíram em um quarto em algumas regiões. Enquanto isso, a precipitação, quando chega, às vezes vem em rajadas mais intensas, levando a inundações maciças registradas em 2009, 2012 e 2014. Ou seja, o sistema climático da região está oscilando de forma mais selvagem.
Como isso mudará as interações entre dezenas de milhares de espécies na selva? Ninguém sabe ainda. Para começar, é impossível quantificar o verdadeiro valor da diversidade perdida.
Em uma revisão recente, uma equipe encontrou evidências de que 381 novos tipos de plantas ou animais foram descobertos na Amazônia durante um único período de dois anos, de 2014 a 2015. Isso é o equivalente a uma nova espécie a cada dois dias. “É meio clichê que a cura para o câncer possa estar na Amazônia, mas também é meio verdadeiro”, diz Esquivel-Muelbert.
Efeito-estufa
Há que se considerar também os efeitos na emissão de CO2 que a degradação da floresta pode trazer porque a Amazônia armazena uma quantidade enorme de carbono.
Segundo os cientistas, em vez de sugar CO2 do céu, uma Amazônia desmatada poderia começar a liberar gases de efeito estufa armazenados. Se 60% da floresta se degradasse e se transformasse em savana, diz Nobre, isso poderia desencadear o equivalente a cinco ou seis anos de emissões globais de combustíveis fósseis.
Michael Mann, um cientista climático e diretor do Earth System Science Center da Pennsylvania State University, chamou isso de “outro ciclo de feedback climático agravante”. Nesse ciclo, a secagem da floresta tropical leva a menos absorção de CO2, o que, por sua vez, promove mais mudanças climáticas, secando mais floresta.
“Dependemos muito do funcionamento contínuo dos principais sumidouros de carbono”, diz ele. “Essa é apenas uma das muitas coisas que tornam as mudanças climáticas um problema global.”
Incêndios Florestais
Desmatamento, incêndios e mudanças climáticas já funcionam sinergicamente na Amazônia. Nos últimos anos, a mudança climática gerou secas que deixaram os incêndios florestais cada vez maiores e mais duradouros.
Entre 2003 e 2013, o desmatamento da floresta caiu 76%, mas o aumento dos incêndios florestais, especialmente durante a seca de 2015, apagou metade do aumento da absorção de CO2.
Por fim, há um efeito na própria produção agrícola. Em alguns lugares, as chuvas na Amazônia ajudam a fornecer água para os próprios produtores de soja e pecuaristas que estão derrubando partes da floresta.
A agricultura brasileira, ao que parece, realmente precisa da Amazônia. “Precisamos ter floresta para ter a chuva necessária para o plantio”, diz Esquivel-Muelbert.
Esse conteúdo foi publicado originalmente em: NatGeo